segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

do processo de criação / um recorte *












fé. julianna penna



Sempre houve criação portanto sempre houve processo?Existe criação sem processo? Tenho algumas pistas para rodear a resposta, acredito no processo e na criação portanto não tenho essa resposta, mas vou tecendo os pensamentos acerca de criação e processo no intuito de que no ato de estarmos confusos já estamos em processo de algum esclarecimento. A música de Tom Zé, "Tô" é uma forma de compreensão estética disso que acabo de falar. Experimentem ouvir!Quando pensamos criação sem processo tendemos a imaginar o "santo que baixa" como uma fatalidade que nos sobressalta.e do contrário, ou seja uma criação com processo, logo pensamos no "antes" do produto apresentado, compartilhado, socializado ou seja, o processo seria a etapa anterior do produto apresentado ou o "antes do pronto".


Deste modo podemos relativizar a finalização do produto enquanto algo que pode ser inacabado, no sentido que está sempre em processo de, está pronto pra ser apresentado e ao mesmo tempo pronto para ser revisitado, refeito, aberto para o novo.
Começamos então pela definição de processo do dicionário da nossa língua

Processo: 1.ato de proceder, ir a diante; seguimento, curso, marcha 2.sucessão de estados ou de mudanças; .3 maneira pela qual de realiza uma operação, segundo determinadas normas, método, técnica; 4. seqüência de estados de um sistema que se transforma; evolução (Aurélio)

Podemos perceber que adjetivos como "abertura", "fluência", "receptividade" e "transformação" podem permear todas as definições anteriormente citadas acerca da palavra processo. O "ir a diante" aqui pode ter o sentido de que pra ir para frente às vezes precisamos voltar atrás ou seja, o curso evolutivo da obra não precisa da linearidade como forma efetiva de progressão.No que concerne à criação artística há quem acredite que o fato de criar por si já é um processo. Sartre aborda a questão com palavras como `necessidade, fatalidade e liberdade´. O ato de criar, portanto, seria como "conferir ao mundo uma necessidade" (BEAUVOIR, 1960/1984, p. 43-44). "O artista então possui uma necessidade (um encadeamento, uma significação que se impõe quase que como uma fatalidade) onde só havia liberdade (plano da vivência onde tudo ou qualquer coisa é possível)" (MAHEIRIE, 2003).

Tomando esta idéia na perspectiva de Sartre, podemos pensar que processo e criação pressupõem um recorte (foco) imbuído de uma necessidade (interesse específico consciente ou não) que implica escolhas (não-liberdade), pois tudo não será e nem é possível. Parece que a criação (a necessidade de criar sentido, significações) não só ocorre por um ato em curso - sucessão de estados e de mudanças - como a própria necessidade/desejo de criar também não aparece subitamente do nada e sim de uma seqüência de estados de um sistema (nosso corpo) que se transforma a todo o momento.
Portanto, a discussão chega, afinal, no corpo, pois acabo de aproximar a última definição da palavra processo do dicionário à palavra corpo e assim uma nova relação se estabelece.


Segundo Sueli Rolnik, por exemplo, "é o mal-estar da crise que desencadeia o trabalho do pensamento - processo de criação que pode ser expresso sob forma teórico-verbal, mas também plástica, musical, cinematográfica, etc. ou simplesmente existencial.".Neste mesmo texto ela aponta os fatores da neurociência que nos ajudam na compreensão do ato de criar. Segundo ela, cada órgão de nossos sentidos possui dupla capacidade: cortical e subcortical.A primeira, a cortical, se refere à apreensão do mundo (das informações) por uma dimensão do tempo e da linguagem para criar mapas de representações mentais que dão sentido e as noções de estabilidade, familiaridade e exterioridade (sujeito e objeto). Já a segunda, a capacidade subcortical, nos é a menos conhecida e é aquela responsável pelas sensações: "... ela nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo". (Rolnik, 2006)

Portanto, neste raciocínio, estes são dois modos de apreensão da realidade muito distintos, pois possuem lógicas diferentes e incompatíveis e é dessa incompatibilidade que surge a necessidade da invenção: "É a tensão deste paradoxo que mobiliza e impulsiona a potência do pensamento/criação, na medida em que as novas sensações que se incorporam à nossa textura sensível são intransmissíveis por meio das representações de que dispomos. Por esta razão elas colocam em crise nossas referências e impõem a urgência de inventarmos formas de expressão. Assim, integramos em nosso corpo os signos que o mundo nos acena e, através de sua expressão, os incorporamos a nossos territórios existenciais. Nesta operação se restabelece um mapa de referências compartilhado, já com novos contornos. Movidos por este paradoxo, somos continuamente forçados a pensar/criar, conforme já sugerido." (Rolnik, 2006)

Dessa forma, sendo o corpo um processo, ou seja, uma sucessão de estados ou/e de mudanças fica mais fácil entender o porque da `criatura/obra de arte´ passar pelo mesmo crivo ou trilhar caminhos semelhantes ao real no sentido de que criar envolve o tempo e o espaço. Apreender o mundo, agir sobre ele, ser vulnerável a ele.

Acredito que mesmo aquele tipo de criação artística no qual não conseguimos acompanhar o processo, o procedimento e suas sucessões, ou seja `o santo da inspiração que baixa´ (do tipo Mozart em seus "surtos composicionais" embora não seja pertinente pegar exemplos assim tão distantes, pois o contexto é diferente e isso muda as abordagens) deverá de algum modo existir um acúmulo de informações que inconscientemente se ordenam em uma configuração específica realizando talvez o que se chama na física quântica de `salto quântico´ que superficialmente aqui dizendo significa que no mundo atômico a energia emitida por um corpo não é contínua e sim pela forma de pacotes de energia (pra isso, ouvir `Quanta´ Gilberto Gil e o `Samba Abstrato´ de Paulo Vanzolini, pérolas da física quântica pop).

Considerando aqui uma equivalência entre energia (no mundo atômico) e criação (como força de trabalho/produção) podemos fazer uma analogia entre indivíduo-processo-ambiente-produto e energia-emissão-continuidade-descontinuidade em uma correlação de micro e macrocosmos.
Acúmulo de informações, acúmulo de energias se dão no tempo/espaço e a transformação de um estado não artístico para um outro artístico se dá contínua ou descontinuamente no ato de criar, ou seja, a mudança de estado não é da ordem quantitativa, independe de quantidade de informação - de tempo de ensaio, de tempo de estudo, trabalho - tudo isso vai no pacote de energia que quantitativamente se acumula mas a transformação disso em outra coisa é de uma ordem qualitativa e até haver essa mudança aí se encontra o processo que pode ou não ser percebido e que pode ou não ser longo e sistemático. Por isso, o caminho de um processo de criação ser tão individual.

O corpo entendido como um processo sendo um canal limitado e ao mesmo tempo aberto e sujeito às transformações só pode assim criar, criar algo, de modo similar à vida. Processo de criação, portanto é algo intrinsecamente individual. É claro que técnicas, procedimentos e métodos devem ser conhecidos para uma possível apropriação ou readaptação como meio de cada um encontrar e acessar por si só o seu modo de ordenar as informações que atravessaram seu corpo, e nisso, pressupõe o fazer escolhas, conscientes ou não. Mas conscientes aqui não significa escolhas racionais no sentido de ser guiado apenas por uma percepção racional e intelectual das coisas, mas também por afetividades múltiplas que são também um tipo de conhecimento humano. Deixo aqui, pra terminar mais gostoso, uma frase de Hélio Oiticica à qual fica resolvida a questão do processo em parte já que ele joga a batata quente da diferenciação entre simultaneidade e mediação que deixamos pra uma outra discussão em um outro momento. Agora, só processando...
"Inventar é processo in progress que não se resume na edificação de obra, mas no lançamento de mundos que se simultaneiam. Simultaneidade em vez de mediação" Hélio Oiticica.




*texto de juliana penna produzido a partir da espaço de trocas do evento 'olhares sobre o corpo'. uberlândia/mg, dez/ 2007. >>>julianapenna2@hotmail.com


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