segunda-feira, 2 de junho de 2008

o ato criativo, marcel duchamp


Consideremos dois fatores importantes, os dois pólos da criação da arte: de uma parte, o artista e, de outra, o espectador, que mais tarde se torna posteridade.
Segundo tudo indica, o artista age como um ser mediúnico que, num labirinto fora do tempo e espaço, procura o caminho que o conduzirá a uma clareira.
Se emprestarmos os atributos de um médium ao artista, temos de negar-lhe o estado de consciência do plano estético e, nesse caso, ele não saberá o que está fazendo ou por que está fazendo. Todas as suas decisões durante a execução da obra de arte repousam somente na intuição e não podem ser traduzidas numa auto-análise, falada ou escrita, ou mesmo pensada.
T. S. Elliot, em seu ensaio Tradição e talento individual, escreve: “Quanto mais perfeito o artista, mais separado, nele, estará o homem que sofre da mente que cria; e melhor ainda sua mente sintetizará e transmudará as paixões que constituem seu material”.
Milhares de artistas criam, apenas alguns são discutidos ou aceitos pelo espectador e uma quantidade muito menor é consagrada pela posteridade. Depois de tudo considerado, o artista pode anunciar que é um gênio; ele tem de esperar pelo veredicto do espectador para que suas declarações passem a ter um valor social e para que, por fim, a posteridade o inclua nos livros de história da arte.
Sei que o que aqui digo não é aprovado por muitos artistas, que recusam o papel mediúnico e insistem na participação da consciência no ato criativo; contudo, a história da arte tem identificado com coerência as virtudes de uma obra artística por meio de considerações completamente divorciadas das explicações racionalizadas do artista.
Se o artista, como ser humano, que tem as melhores intenções sobre si e sobre o mundo, não representa papel nenhum no julgamento de sua obra, como alguém poderá descrever o fenômeno que induz o espectador a reagir criticamente à obra de arte? Em outras palavras, como essa reação viria à tona?
Esse fenômeno é comparável à transferência do artista para o espectador na forma de uma osmose estética, que acontece através de certas matérias inertes, como pigmento, piano ou mármore.
Mas, antes de passarmos adiante, gostaria de precisar melhor o que entendemos pela palavra “arte” - mas de forma alguma pretendendo uma definição.
A idéia que faço de arte é a de que tanto ela pode ser ruim, como boa, como indiferente, mas de qualquer modo continua sendo arte, da mesma maneira que uma emoção, por ser ruim, não deixa de ser uma emoção.
Portanto, quando me referir ao “coeficiente artístico”, fica entendido que não estou me referindo somente à arte maior, mas também tentando descrever o mecanismo subjetivo que produz arte no estado bruto - ruim, boa ou indiferente.
No ato criativo, o artista passa da intenção para realização por meio de uma cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta para chegar à realização é feita de trabalhos, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões, que não podem e não devem ser plenamente conscientes, pelo menos no plano estético.
O resultado dessa luta é uma diferença entre a intenção e a realização, uma diferença da qual o artista não tem consciência.
Conseqüentemente, na cadeia de reações que acompanham o ato criativo, está faltando um elo. A lacuna - que representa a inabilidade do artista para expressar plenamente sua intenção, aquela diferença entre o que foi pretendido e o que não foi conseguido - é o “coeficiente artístico” pessoal contido na obra.
Em outras palavras, o “coeficiente artístico” pessoal é como uma relação aritmética entre o não-expresso mas pretendido e o não intencionalmente expresso.
Para evitar qualquer equívoco, lembramos que esse “coeficiente artístico” é uma expressão pessoal da arte, isto é, em estado bruto, que precisa ser “refinado”, como o melaço em açúcar puro, pelo espectador; o número expresso nesse coeficiente nada tem a ver com seu veredicto. O ato criativo adquire outro aspecto quando o espectador experimenta o fenômeno da transmutação: através da mudança da matéria inerte para uma obra de arte é que a verdadeira transubstanciação ocorre, e o papel do espectador é o de determinar o peso que tem a obra na escala estética.
Afinal de contas, o ato criativo não é executado pelo artista sozinho; o espectador põe a obra em contato com o mundo externo ao decifrar e interpretar seus atributos internos, contribuindo, dessa maneira, para o ato criativo. Isso ainda fica mais evidente quando a posteridade dá ser veredicto final e algumas vezes reabilita artistas esquecidos.

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